segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Morte no avião - Carlos Drummond de Andrade

Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua.
Vou morrer.
Não morrerei agora.
Um dia inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo. Quantos passos na rua, que atravesso.
E quantas coisas no tempo, acumuladas.
Sem reparar,
sigo meu caminho.
Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.
Visito o banco.
Para que esse dinheiro azul se algumas horas
mais, vem a polícia retirá-lo do que foi meu peito e está aberto?
Mas não me vejo cortado e ensangüentado.
Estou limpo, claro, nítido, estival.
Não obstante caminho para a morte.
Passo nos escritórios.
Nos espelhos, nas mãos que apertam, nos olhos míopes,
nas bocas que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo:
a morte dissimula seu bafo e sua tática.
Almoço. Para quê?
Almoço um peixe em outro e creme.
É meu último peixe em meu último garfo.
A boca distingue, escolhe, julga,
absorve.
Passa música no doce, um arrepio de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.
Estou na cidade grande e sou um homem na engrenagem.
Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés que retinem xícaras e anedotas,
como não olho o muro de velho hospital em sombra.
Nem os cartazes.
Tenho pressa.
Compro um jornal.
É pressa,
embora vá morrer.
O dia na sua metade já rota não me avisa
que começo também a acabar. Estou cansado.
Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.
A fatura. A carta. Faço mil coisas
que criarão outras mil, aqui, além, nos Estados Unidos.
Comprometo-me ao extremo, combino encontros a que nunca irei, pronuncio palavras vãs,
minto dizendo: até amanhã.
Pois não haverá.
Declino a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga a menos que dor, a mosca, o zumbido...
Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana,
como os caixeiros escolhe meticulosa, entre doenças e desastres.
Ainda não é a morte, é a sombra
sobre edifícios fatigados, pausa
entre duas corridas.
Desfale o comércio de atacado,
vão repousar os engenheiros, os funcionários, os pedreiros.
Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,
mil outras profissões noturnas.
A cidade muda de mão, num golpe.
Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenado
que as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha. Estou sereno.
Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso decidir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.
Mas tomo o carro. Indico o lugar onde algo espera.
O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro no interior da morte.
A morte dispôs poltronas para o conforto da espera.
Aqui se encontramos que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.
Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete dos sopros robustos prestes a desfazer-se.
E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas colchão de nuvens, mortes se dissolvem,
apenas um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura: e dentro da caixa iluminada e tépida
vivemos em conforto e solidão e calma e nada.
Vivo meu instante final e é como se vivesse há muitos anos antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefrável,
onde não houvesse pausas, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta blocos cade vaz maiores de ar.
Sou vinte na máquina que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metro de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.
Ó brancura, serenidade sob a violênciada morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo
golpe vibrado no ar, lâmina de vento no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.