domingo, 5 de dezembro de 2010

José Saramago - três poemas

Caros amigos, bom dia!

Os meus muitos trabalhos tem, em razão da imensa demanda, me impedido de realizar novas postagens, inclusive, com textos meus. Hoje, me vi lendo "Ensaios sobre a cegueira", que se encontra aqui, mas nunca o li; de igual forma, "Caim" e "A viagem do elefante", todas obras do José Saramago, cuja obra dispensa qualquer comentário. Em homenagem ao grande escritor e a minha omissão em ler os referidos títulos, posto, adiante, três poemas de sua autoria:
Arte de Amar
Metidos nesta pele que nos refuta,
Dois somos, o mesmo que inimigos.
Grande coisa, afinal, é o suor
(Assim já o diziam os antigos):
Sem ele, a vida não seria luta,
Nem o amor amor.
Teu corpo de terra e água
Teu corpo de terra e água
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho.
Teu ventre de seivas brancas
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho
Tua boca verdadeira
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho
Bem que o mundo não seria
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho
No coração talvez
No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração
Um abraço e um feliz domingo a todos!

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Ampulheta

Na areia que se esvai,
sinto, sem o ver ou notar
Que o meu tempo se vai
sem ter como o cessar.

Na contagem dos minutos,
Vejo as mudanças em tudo.
De ti recordo os absurdos,
que me deixaram mudo.

Por que não posso recordar,
O que tens contra mim, vida
que não deixa-me mais amar.

Resta-me na parede te jogar,
para que, como o tempo, pares
para assim, outra vez, sonhar...

Com um futuro risonho, como o sorriso da criança em festa...

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Morte no avião - Carlos Drummond de Andrade

Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua.
Vou morrer.
Não morrerei agora.
Um dia inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo. Quantos passos na rua, que atravesso.
E quantas coisas no tempo, acumuladas.
Sem reparar,
sigo meu caminho.
Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.
Visito o banco.
Para que esse dinheiro azul se algumas horas
mais, vem a polícia retirá-lo do que foi meu peito e está aberto?
Mas não me vejo cortado e ensangüentado.
Estou limpo, claro, nítido, estival.
Não obstante caminho para a morte.
Passo nos escritórios.
Nos espelhos, nas mãos que apertam, nos olhos míopes,
nas bocas que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo:
a morte dissimula seu bafo e sua tática.
Almoço. Para quê?
Almoço um peixe em outro e creme.
É meu último peixe em meu último garfo.
A boca distingue, escolhe, julga,
absorve.
Passa música no doce, um arrepio de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.
Estou na cidade grande e sou um homem na engrenagem.
Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés que retinem xícaras e anedotas,
como não olho o muro de velho hospital em sombra.
Nem os cartazes.
Tenho pressa.
Compro um jornal.
É pressa,
embora vá morrer.
O dia na sua metade já rota não me avisa
que começo também a acabar. Estou cansado.
Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.
A fatura. A carta. Faço mil coisas
que criarão outras mil, aqui, além, nos Estados Unidos.
Comprometo-me ao extremo, combino encontros a que nunca irei, pronuncio palavras vãs,
minto dizendo: até amanhã.
Pois não haverá.
Declino a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga a menos que dor, a mosca, o zumbido...
Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana,
como os caixeiros escolhe meticulosa, entre doenças e desastres.
Ainda não é a morte, é a sombra
sobre edifícios fatigados, pausa
entre duas corridas.
Desfale o comércio de atacado,
vão repousar os engenheiros, os funcionários, os pedreiros.
Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,
mil outras profissões noturnas.
A cidade muda de mão, num golpe.
Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenado
que as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha. Estou sereno.
Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso decidir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.
Mas tomo o carro. Indico o lugar onde algo espera.
O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro no interior da morte.
A morte dispôs poltronas para o conforto da espera.
Aqui se encontramos que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.
Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete dos sopros robustos prestes a desfazer-se.
E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas colchão de nuvens, mortes se dissolvem,
apenas um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura: e dentro da caixa iluminada e tépida
vivemos em conforto e solidão e calma e nada.
Vivo meu instante final e é como se vivesse há muitos anos antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefrável,
onde não houvesse pausas, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta blocos cade vaz maiores de ar.
Sou vinte na máquina que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metro de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.
Ó brancura, serenidade sob a violênciada morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo
golpe vibrado no ar, lâmina de vento no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.

domingo, 10 de outubro de 2010

Domingo - Minha autoria

Como todos os domingos, acordo cedo da manhã e abro a janela do meu quarto. Ouço o cantar um tanto quanto misturado dos pássaros, identificando apenas que, entre eles há um canário do império, pois desde menino escuto seu cantar por estes lados. Saudades daquela infância onde tudo era alegria, desconhecia as dores do mundo que hoje dormem em minha alma. Levanto-me, e olho-me no espelho. No rosto, as marcas de sofrimento, tristeza causadas pelo tempo. O que foi feito do brilho dos olhos e do sorriso de criança? Não sei! Talvez, como a alegria e esperança da adolescência, tenham se perdido por estes tempos; ou será que isso pertence apenas às crianças? Sim, porque a elas pertencem todos os sentimentos mais bonitos e sinceros do mundo.
Visto-me, como se esperasse aquele convite que sei que jamais virá (mas que mal há nisso, pois o fiz sem interesse algum?). Do quarto, vejo meus livros, papeis, computador, todos chamando-me para mais um dia de trabalho. Em mim, trava-se uma grande batalha entre o ir ou não, tornando-me um caixa de dúvidas, das quais tenho a mesma resposta de sempre. De súbito, recordo-me: "hoje é domingo!". Passo a olhar para o terraço, para a rede que se põe a me convidar a ver o mundo. Deito-me nela e, embalado pela música, ponho-me a sonhar outra vez! Sonho com meus irmãos e amigos, alguns ainda entre nós, outros não; todos a dançar e a rir, o que me alegra de veras. Ah, se eu pudesse todos os dias deixar um pouco desta alegria na casa deles, para espantar os dissabores e tristezas que se fazem aqui! Ah, como seria feliz, pois não há prêmio maior do que ver quem gostamos felizes! Vão se indo todos, um à um, para suas casas... E eu aqui! Sozinho? não! Sinto-me um pegar doce e singelo em minha mão.
Jamais esperava que você viesse, disse-lhe! Sem responder-me, dirigiu minha cabeça a seu colo e acarinhou-a ternamente até o fim da música, fazendo-me sentir o mais feliz dos homens, pois foi a mulher a quem mais amei na vida, até mais do que a mim mesmo. O disco termina, e, mais uma vez, o destino faz com que ela se vá... Continuo a domir na rede...
E assim segue-se o meu dia, até acordar para o mundo outra vez...
Levanto-me e acendo o lânguido cigarro da tristeza, consumindo-o num misto de revolta e resignação, pois nada disto foi real, mas nada é possível fazer para mudar a realidade que me cerca, pois voltar no tempo também é sonho, distante da realidade...
Sei que a maior mentira que podemos contar é aquela dita a nós mesmos, mas, não acho que dizer que tenho esperança de que um pouco do que tenho sonhado possa acontecer, para que tenha em mim que tudo isso não foi em vão...

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Cruzou por mim - Fernando Pessoa

"Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha (exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
às normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser juiz do supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do álvaro de campos!
Tão isolado na vida! tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado do álvaro de campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! sou lúcido."