segunda-feira, 5 de julho de 2010

As feras mortas - Maximiano Campos




Atendendo a pedidos, publico, nesta ocasião, o conto "as feras mortas" de autoria do escritor pernambucano Maximiano Campos, um dos mais expressivos integrantes da "geração de 65, meu "patrono" na cadeira de n° 20 da Academia Camarajibense de Letras.


É o texto:


As feras mortas


Você pode dizer que é mentira minha. Quem sabe? A verdade é que estou sendo perseguido. As notícias dos jornais falam de misérias. Alguns amigos se afastaram, arrebentaram-se algumas esperanças. No rastro dos meus fracassos, chegou a angústia endemoniada. Mas, o pior é o tempo que me persegue. O tempo anda me perseguindo. O tempo do relógio, o que me escraviza na repartição, e o outro: o tempo comum a todos nós, espectadores dos grandes desassossegos da ambição universal que, às vezes, assume a forma de massacres, guerras, explosão de ódios, como espasmos epiléticos da humanidade. O tempo é um calhorda, tanto serve a Deus quanto ao Diabo. Você está rindo, mas eu lhe digo: o tempo é um assassino perigoso. Mata a mocidade, desejos, amizades, depois, na velhice, dá o golpe final no que resta de nós. Meu amigo, a realidade nem sempre é a verdade. Além do mais, cada qual tem a sua. Sabe de uma coisa? A realidade também anda me perseguindo. Agora é que você vai rir mesmo, mas vou lhe dizer: eu sou o que sonho. Eaqui, nesta sala, o meu sonho anda solto, fera liberta, desembestada em descampos sem cerca nem dono. A realidade quer arrebentar comigo. Mas eu vou me proteger com o sonho. Esse vai ser o meu castelo, nele vou colocar o mundo verdadeiro, o descompromissado com as etiquetas, os horários, as convivências interesseiras. É assim mesmo: a realidade quis me fazer medo. O tempo quis e quer acabar comigo. Sei que há dois grandes circos armados por Deus: o da vida e o da morte. O danado, mesmo, é o preço que se paga para tomar parte no espetáculo. Os que têm fé afirmam que o circo da morte é limpo asseado. Mas ninguém, ainda, conseguiu sair dele e voltar para contar aos que estão no circo da vida como é o espetáculo. Pode até ser o silêncio. Não sei porque, mas acho que o tempo é um palhaço maldoso e meio sem graça. E a realidade é uma velha atriz cansada, com uma maquilagem agressiva e a mania de dar más notícias. E a nossa atuação nisso tudo? Nisso tudo não, no circo da vida. Obrigam a gente a entrar na jaula do leão, dar saltos mortais, aplaudir o palhaço, ser o palhaço, e tudo isso sem repouso, mudando sempre de lugares. Pois bem, não saio mais desta sala . Sei que o tempo não é um cão que a gente enxote com facilidade, nem a realidade apenas uma percepção, espécie de fotografia da obra de Deus. Fechei os olhos para toda essa farsa. Sonho. Pra mim, sonhar é que é viver. Olhe: esta casa tem duas salas: numa coloquei o passado, noutra, o futuro. O presente não me interessa muito. Além do mais, o presente é feito água de rio, quando a gente vê já passou. E nunca se pode distinguir a que passou da que está passando e da que vai passar; o importante é o rio. Naquela sala, ali em frente, há dois retratos: um de Napoleão e outro de César. Todos os dias eu indago a eles: "Onde está agora o poder de vocês"?
- E o que é que eles lhe respondem?
- Você está querendo fazer deboche. Não o chamei aqui. Eles não respondem nada. Claro que não poderiam responder, a realidade não deixa que eles respondam.
- O que é que a realidade tem a ver com isso?
Tem a ver que a realidade não vale grande coisa. Olhe, você não devia estar aqui conversando comigo. Você só acredita... Bem, mas não quero julgá-lo. A realidade é o que estou conversando com você, os móveis que você está vendo ao meu redor, a hora que o seu relógio está marcando, as minhas feições, o timbre da minha voz. Mas o meu sonho você desconhece. Bem, deixemos isso pra lá. Napoleão e César estão perdidos, um apunhalado, e o outro dizem que foi envenenado.
- Você está um bocado confuso. Não estou entendendo direito o que está querendo dizer.
- Ah, você está dizendo que me acha confuso. Não foi isso o que quis dizer? Como? Não compreende o que estou falando? Mas não me preocupo com essa sua opinião. O que mais exige compreensão é a realidade, e esta também me persegue, essa miserável. O meu sonho? Olhe, para pessoas feito você, que vivem a fazer perguntas e indagações, os sonhos são feras mortas. As explicações, às vezes, matam. Mas você não vai matar os meus sonhos. As minhas feras estão vivas e libertas, correndo nos descampos ensolarados da imaginação. Sei que, um dia, os meus sonhos serão feras mortas. Mas eu carregarei comigo estas feras até que o tempo coloque cercas nos descampos e apague todas as lembranças. Um homem vale o que valem as suas feras.
Não me faça mais perguntas, você está atrapalhando tudo.
- Mas, você mesmo, no início da conversa, se queixou de que estava perdendo alguns amigos. Pensei que você estava precisando de apoio.
- Olhe aí, você querendo botar lógica nas minhas palavras. Você não tem nada a ver com o que eu digo ou deixo de dizer.
- É, acho que vou embora. Lamento muito ter encontrado você neste estado.
Foi embora. O sujeito que estava conversando comigo foi embora. Mas eu ainda estou falando. Continuo a falar. Que importa que não estejam me escutando? Agora mesmo vou colocar outra pessoa para me ouvir. Pronto, outra pessoa já está aqui na sala. Vou botar essa outra pessoa para conversar com Napoleão e César e ficar ouvindo a conversadeles. A pessoa está dizendo que não precisa conversar diante dos retratos. Tem razão. Os dois guerreiros já estão aqui, na sala, e começaram a conversar com o visitante. Já estão discutindo há duas horas. Vou entrar na conversa: daqui a pouco, eles se atracam. A conversa está ficando desagradável porque a ambição deles já está aparecendo. E, vou acabar com essa conversa. A ambição é danada de parecida com a realidade e a realidade é minha inimiga. O meu sonho agora está liberto e o meu silêncio me apazigua. O meu silêncio, essa fera de estimação. Mas por favor, não zombem. Volto a apelar: acabem com esses risos! Continuam rindo? Pois bem, os retratos estão nos seus lugares, ninguém conversou nada. É isso que querem que eu diga? E o meu silêncio? Ah, está solto no sonho, nesse descampo ensolarado, nessa imensidão das impossibilidades conquistadas porque imaginadas. A conversa pára aqui. Mas, na verdade, ela continua, e as feras viram rebanhos, o tempo acovardado vai fugir. O tempo é um covarde, foge sempre, arrastando a mocidade. Estou sonhando, por isso me calo. Os pensamentos partem na imaginação rumo ao outro circo. Vou entrar lá, vou entrar naquele circo, no outro, onde os espetáculos não devem ter tristes intervalos. O intervalo, o último, é agora, pronto, já estou prestes a ultrapassá-lo. Depois, talvez meus amigos entendam que não quis ofendê-los, é que o outro circo estava abrindo para mim as suas portas. E a morte é a única certeza que pode trazer alguma novidade.
in Diário de Pernambuco, 20/09/98

Maximiano Campos nasceu no Recife, em 1940, e morreu no mês passado. Começou a escrever muito cedo, no Colégio São João, onde fez os estudos secundários. No final da década de 60, publicou o seu primeiro romance, Sem Lei Nem Rei, transposto para a música por Capiba, com um longo prefácio de Ariano Suassuna, que analisava as qualidades de sua obra e o desenvolvimento da literatura nordestina.
Na década de 70, publicou o livro As Emboscadas da Sorte, onde se encontra o conto Na Estrada, um dos seus melhores trabalhos literários e dos momentos mais altos da literatura brasileira. Em 75, a Editora Artenova, do Rio de Janeiro, publicou a novela Major Façanha, que se transformou, imediatamente, num sucesso de crítica e de público. A Memória Revoltada foi publicada no início dos anos 80, pelas Edições Pirata, em co-edição com a Civilização Brasileira.
Entre os seus escritores estrangeiros preferidos estão Hemingway, Nikos Kazantizakis e Tolstoi; e entre os brasileiros, Ariano Suassuna, José Lins do Rego eGilberto Freyre. Escreveu um longo ensaio para o posfácio do livro A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, saudando as qualidades do autor de O Auto da Compadecida. Tem contos publicados em várias revistas e antologias brasileiras, além de livros para-didáticos. Entre as editoras nacionais que publicaram os seus trabalhos ficcionais estão a Brasiliense, a O Cruzeiro, a Artenova e Atual, todas do eixo Rio-São Paulo. Costumava escrever todos os dias. Publicou duas antologias e deixou muitos contos inéditos.